quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Manuscritos de Zeca Afonso - A Carta

Uma carta toda ela escrita em poesia.

Como se sabe, em 1967 estava Zeca Afonso a lecionar na Beira. Reza em tudo o que li que Zeca não acabou o contrato e regressou a Portugal antes do fim do ano letivo. Por esta carta tal não aconteceu. O ano letivo em Moçambique era de 18-9-1966 a 29-7-1967. Zeca regressa em Agosto como aqui o refere. Mas isso por ora não importa. Importa sim, a riqueza textual e poética desta missiva escrita à Lurdes e ao Zé, que não sei quem serão.

Sabe-se que Zeca não foi para Faro, mas sim para o Liceu Nacional de Setúbal. Seria depois expulso do ensino.

Tive o cuidado de separar o texto e é extraordinário. Um texto de poesia que nos dá a grandeza mental e o génio de Zeca Afonso.

Tete, 14/6/67
Colégio S. José

Carta para Lurdes e Zé

Vocês não escrevem
porque estão zangados?
Amuados?
Desiludidos?
E somos nós os visados?
Os apontados?
Os aludidos?
Se não,
porque estamos dados
como desaparecidos?

Sabeis que vamos daqui para fora
a cem à hora?
Num barco janota
que nos transporta
para a bancarrota?
Parte em Agosto,
em Agosto!
Pelo sol posto,
até aposto!

Chama-se Angola,
levo a viola.
numa sacola:
Toco as “janeiras”
às passageiras
solteiras.
Digo alarvadas
às burguesinhas casadas.
Ou durmo a sesta
como uma besta.

Eu estou em Tete
cumprindo um frete
docente.
Deixei a Zélia,
deixei a Lena,
deixei a Jana,
o Pingente.
Na Beira chata
que é uma caca
e uma bravata
imprudente.

Sou todo ouvidos
para os amigos
antigos.
Contem histórias
das mais recentes
memórias.
Como se dão
dentro desse paredão?

Se estais mais gordos,
se estais mais magros,
se estais mais ricos
[Coitados].

Eu estou cansado,
estou esvaído
tenho o coco
carcomido.

Mas vou ficar
como novo
dentro do ovo,
junto do povo.
Mas vou ficar como fino
a cantar
“o meu menino”.

Preciso dum tacho raro
na Comercial de Faro.
A rima é para dar com “aro”,
"ignaro",
é ainda mais caro.

Mas estou a ver o manguito
que me faz o Monteirito.

Se vou falar ao Cardeira,
dou com as ventas na torneira.
Diz o Monteiro com mágoa
que não faz filhoses de água.

Já falei ao meu irmão,
diz que está cheio o vagão.
Diz o Cardeira: Concorra,
e a rima agora concorda.
Vou escrever à Direcção
Geral da Corporação.

Vou meter o requerimento
para ver se ingresso a contento.
Vou meter a papelada
para ver se engrosso a manada.

Viva a Lurdes. Viva o Zé
Viva eu, Viva, rapé.

Amigo Afonso
(o José)

P.S.
Até dois de Julho aqui
Depois volto donde vim.
Virei depois às horais
Duas (?) semanas*, não mais.

Notas:

*parece, pela espessura de tinta, que esta parte foi acrescentada posteriormente.

O Monteiro aqui referido, era um antigo colega do Zeca na Comercial de Faro, e foi quem deu ao Zeca o tal "lapisito" para o Zeca acabar a tese «Implicações substancialistas na filosofia sartriana».

Nas biografias existentes refere que Zeca Afonso quando saiu de Lourenço Marques para a Beira, lecionou no Liceu Pero de Anaia, de 14-9-65 a 30-7-1966, tendo revogado para o ano seguinte onde leciona de 18-9-1966 a 29-7-1967. Não há qualquer referência de Zeca ter dado aulas em Tete. A carta de Zeca refere Tete e o Colégio S. José e diz que deixou a Zélia, a Lena e a Jana (Helena e Joana, as filhas), sinal que enquanto elas estavam na Beira, Zeca lecionava em Tete. De Tete à Beira de carro são cerca de 8h de caminho (583 km).

Em "P.S." Zeca refere que ficará em Tete até 2 de Julho e que após isso, regressará à Beira e voltará a Tete para as "horais" (penso que aqui Zeca queria dizer "orais", que fazem parte dos exames finais e não "horais" relativo a horas).

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