quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Declarações de Voto dos partidos - PS

Declarações de Voto dos partidos com assento na Assembleia da República, no dia 26 de fevereiro de 1987, pela morte de José Afonso.

O Sr. Presidente:- Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, meus caros José Manuel Mendes, Raul Castro, José Gama, José Carlos Vasconcelos, António Capucho: É fácil falar depois de vós. Antes de mais, para, na qualidade de cidadão português e de irmão que fui - porque assim me considero do Zeca Afonso, vos agradecer as belas palavras que sobre ele aqui trouxestes.

De entre todos aqueles que admiram o Zeca Afonso tenho um raro privilégio: ainda coincidi em Coimbra com ele durante três ou quatro anos; fui a África com o Orfeão e com ele; convivi com ele em Lourenço Marques vários anos e acompanhei-o à guitarra imensas vezes quando ele cantava, como só ele o sabia fazer, o fado clássico de Coimbra - fado que nunca renegou.

Mas já então, quando em Coimbra eu o acompanhava e ele cantava, ele fazia aquilo a que Fernando Pessoa chamou «uma revolução todos os dias dentro da nossa alma». O fado de Coimbra, que é de extraordinária beleza lírica, como sabem, não o satisfazia. E ele germinava uma revolução que veio a trazer da alma para a vida sob a forma das baladas, de que foi o inovador porque o sinal do génio é a capacidade de antecipação. Ele teve essa capacidade.

E qual foi a revolução que ele tirou da alma para a vida? Foi meter a ideia dentro da beleza do fado de Coimbra, foi harmonizar, como compositor, como poeta e como intérprete essa beleza com essa ideia e pôr essa harmonia ao serviço dos bons combates. Ele foi, no bom sentido da palavra, um revolucionário e conseguiu aquilo que nenhum de nós conseguiu: provavelmente, houve discursos geniais por parte da oposição portuguesa mas que morriam no dia em que eram proferidos, enquanto que a sua mensagem era repetida todos os dias por milhares de portugueses que cantavam as suas trovas. Essa era a sua grande força!

Devo dizer que o conheci como só os irmãos conhecem os irmãos. Ele era um «franciscano». Vivia aquela essência do franciscanismo que vive na alma do povo português; interpretou-a como ninguém.

Declarou guerra às convenções. Era homem de uma extraordinária simplicidade. E é preciso ter conhecido o seu pai que - tenho muito orgulho em dizê-lo aqui pois, porventura, nem todos o saberão - foi o mais extraordinário magistrado com que trabalhei em toda a minha vida profissional. Foi juiz da relação de Lourenço Marques e daí não passou porque era completamente surdo. Vivia isolado dos sons do mundo e, convivendo todas as horas com o mundo do direito, atingiu uma perfeição técnica e humana que, provavelmente, nenhum outro magistrado terá atingido na história da magistratura portuguesa - digo isto sem nenhuma espécie de hesitação. Seu pai dominava completamente a técnica jurídica; escrevia primorosamente o português; tinha uma intuição rara do caso jurídico; era um homem excepcionalmente inteligente - a inteligência do Zeca Afonso tem origem conhecida - e era, também e sobretudo, um homem excelente, um homem bom, tal como sua mãe, ainda viva, uma piedosa e bondosíssima senhora, que deve estar a sofrer muito neste momento.

O irmão dele, João Afonso, que também cantava muito bem o fado de Coimbra, era meu companheiro de mesa de café em Lourenço Marques e meu companheiro do grupo dos democratas de Moçambique. Continuámos lá a convivência de Coimbra. Conheço-o como conheço as minhas mãos.

A beleza das trovas de Zeca Afonso tem, em meu entender, três ou quatro origens identificadas.

A primeira é a beleza do fado de Coimbra que ele nunca renegou e que soube conciliar, exactamente, com a beleza das suas baladas.

A segunda é a circunstância curiosíssima de tocar mal viola: só sabia três ou quatro posições na viola.

A terceira origem reside no facto de José Afonso não saber música. Ele tinha que memorizar os sons. Porventura, poucos de vós imaginais o que significa ser capaz de fazer o que ele fez sem saber escrever música. Ele tinha que memorizar os sons que criava e isso não é fácil, porque é o mesmo que um analfabeto tentar decorar os Lusíadas ou fazê-los de cor, sem saber escrever os versos que cria.

Pois bem, o Zeca Afonso sabia três ou quatro posições na viola e não sabia escrever música. Esse facto imprimia às suas composições a simplicidade que lhes permitiu serem entendidas pelo povo português. Não era uma música rebuscada; era uma música à base de um, dois tons, nunca mais. Essa simplicidade permitiu-lhe poder comunicar com o povo, que é, ele também, simples, também não rebuscado, também não sabedor dos rigores da música sofisticada.

Outra das origens da beleza da sua composição - a quarta - é a circunstância de, em África, ter contactado com o folclore africano. Quem viveu em África sabe que muitas das suas composições - sobretudo depois que por lá passou - têm uma originalidade que só é possível a quem viveu em África e conviveu de perto com o folclore africano e soube entendê-lo na sua essência.

Por outro lado, Zeca Afonso era um homem que tinha como supremo referencial o homem do povo, o homem simples. Ele próprio era um homem simples, despretensioso. Não o fazia por jactância, fazia-o naturalmente: desprezava as convenções. No Algarve , salvo erro em Olhão, conviveu com os pescadores mais humildes e tem composições que lembram esse período em que por lá passou.

Mas uma outra grande fonte da originalidade e da beleza das composições de Zeca Afonso é a sua bondade como homem e é preciso que isso se registe aqui. Só a bondade, quando se consegue traduzir em arte, atinge os píncaros de beleza que atingiram as suas composições. A verdade é que ele é verdadeiramente um fenómeno. O que teria sido este homem se tivesse outros instrumentos para traduzir o seu imensíssimo talento?

Foi um artesão da canção popular portuguesa. Mas, talvez aí esteja o seu mérito, porque também as mais inspiradas composições do nosso folclore são de origem desconhecida ou têm origem em pessoas que também não sabiam música e que também não tinham outros dons que não fossem os do próprio génio.

O Zeca Afonso, para mim, é fundamentalmente um homem que soube interpretar o sentimento popular e a sensibilidade popular; que meteu a ideia dentro do fado de Coimbra; que harmonizou a ideia e o fado e os pôs ao serviço dos bons combates. Abril deve-lhe o seu hino; Portugal deve-lhe a ele, ao seu sacrifício e às suas trovas, como a muitos outros combatentes pela liberdade, a própria liberdade.

Referiu o José Carlos Vasconcelos - outro grande amigo dele - que na Balada de Outono, e é verdade, ele disse: «Eu não volto a cantar». Terá sido dos poucos enganos do Zeca Afonso. Ele vai voltar a cantar; o povo lhe emprestará a sua voz e cantará os seu poemas e a sua trova até que a sua mensagem reencarne definitivamente no homem português.

Morreu o trovador. Viva a sua trova!

Aplausos gerais.

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