quinta-feira, 24 de novembro de 2016

«A SUPERSTIÇÃO DE AMÉRICO TOMÁS»

(ou, "Encontro Imprevisto com Zeca Afonso)
---- in "CONTOS & NARRATIVOS DO INSÓLITO"
(...)
O empregado apagara algumas luzes. Aos fundos, na semiobscuridade, dois clientes e duas canecas de cerveja. Sentei-me num tamboril, ao balcão. Desses fundos, interpelaram:
--- Já não se fala aos amigos, pá!
Era o Zeca Afonso. Eu abalara de Coimbra, 1955. Anos mais tarde, encontrara o Zeca em S. Marçal, próximo às instalações da EN, Serviço Ultramarino. A notícia, Salazar caíu da cadeira, assunto entre sílabas: «Os proselitismos, canga a amochá-lo». Agora, no “Paquito”. Levantou-se. Sorriso esplendente, como sempre. O sorriso de há vinte anos:
--- Que fazes, pá? --- Tirara os óculos. Demos um abraço.
--- E tu?
--- Troco as voltas à PIDE, em semiclandestinidades, ---respondeu, melancólico e suave, um dos traços mais vincados da sua sociabilidade inata.
Três dias antes do 1º de Maio, a PIDE montava discreto resguardo aos metros quadrados da permilagem da sua residência, em Setúbal. Um dos agentes chincava a aldraba:
--- Um autógrafo, senhor doutor.
Para a filha. Amiga ou amante. Para a mulher, que a calidez da voz nas “Serenatas de Coimbra”, enraizada em romantismos, a cada mergulho feminino ao ego e às memórias, esplendia à tona:
--- O doutor sabe! --- mas, tão-só, a certificarem que estava em casa e não se pisgaria por clarabóia e telhados, como nas demais vezes. Ai dele! Nem alma, nem memórias de fados e cantares, coiro a apodrecer de vez em Caxias, se lhe aproveitariam.

Respondi:
--- Ultimo a montagem de um equipamento de tradução simultânea. Um Simpósio a inaugurar pelo Américo Tomás, na Gulbenkian.
Zeca Afonso largou uma gargalhada. A de sempre, em momentos de chalaça ou eclosão política:
--- Cuida-te com o champanhe, pá!
--- Ainda te lembras?

(...)

Peguei, então, uma garrafa de champanhe pelo gargalo (deve ter sido o único barco navio (“Capitão José Vilarinho”), até aos hojes, benzido duas vezes e baptizado com duas garrafadas de champanhe) a filha do Tomás a avisar: «Parecem de ferro, força!» e, de um golpe, estilhacei-a no anteparo do palanque. O champanhe derramou-se, salpicou as fímbrias arcebispais, molhou as botinhas rouge, alagoou parte do palanque, Gertrudes aos gritinhos e, por buraco na sola da bota, encharcou-me o coturno: a cada passada, chloque, chloque, os chloques eram motivo ao Américo Tomás, que coçava o nariz. O Neves, em surdina, caçoou: «Bebes champanhe pelos pés, heim!»

(...)

À noite, na gravação “Serenata de Coimbra” a incluir na grelha de programas, mensalmente, o Brojo e o António Portugal no naipe de guitarras e violas, contei o acontecido ao Zeca Afonso, que mangou:
--- Eh, pá! Além de ajudares a dar de comer a um milhão de portugueses, até no buraco da bota és discípulo de Salazar, pá!

(...)

Quisera conversar, de novo, com o Zeca: falarmos da eternidade do pavio e das superstições do Tomás. Mas só o encontrei no último refluxo: o da sua morte, funeral a que o Cavaco Silva, então Primeiro-Ministro, não só não se dignou, como proibiu ministros e secretários de Estado de se dignarem: ateísta e comunista, não é digno!

Ah! Zeca! Os meus olhos aguados, alimentei-os com a poesia dúctil, concreta e ácera dos teus cantares, e alimentá-los-ei até aos ocasos na curvatura da esperança.

Afonso Henriques Ferreira

Daqui:

https://www.facebook.com/afonso.ferreira.9231/posts/334823846678065?__mref=message_bubble


O Livro


Sem comentários:

Enviar um comentário